Eduardo Jobim[1]
Daniela Copetti Cravo[2]
Resumo
Visa o presente artigo avaliar as vantagens e desvantagens que podem haver na adoção da tecnologia blockchain em transações imobiliárias. Para tanto, o presente artigo foi separado em três partes iguais, que visam discorrer sobre os seguintes pontos: primeiro, será apresentada a tecnologia blockchain e suas potencialidades; segundo, será indicado se a referida tecnologia é capaz de superar os atuais métodos de registros de imóveis; por fim, ao evidenciar como a experiência estrangeira tem feito uso da tecnologia blockchain nas transações imobiliárias, procura-se determinar se é possível conciliar a tecnologia blockchain aos métodos tradicionais de registro de propriedade. Ao lançar mão do método dedutivo de análise, o presente artigo será desenvolvido por meio de revisão bibliográfica do tema e espera responder se a tecnologia blockchain atende às necessidades típicas dos sistemas registrais, dentre as quais podem ser reconhecidas a necessidade de imprimir segurança jurídica ao tráfego jurídico-imobiliário por intermédio da publicização registral.
Sumário: Introdução – 1. O que é a tecnologia Blockchain? – 2. Como a tecnologia blockchain supera os tradicionais métodos de registro de imóveis – 3. Conciliando a tecnologia blockchain com os métodos tradicionais de registro de propriedade: a experiência da Suécia – Conclusão – Referências Bibliográficas
Introdução
As novas tecnologias têm impulsionado avanços significativos em várias áreas. Inserida no contexto de tecnologias disruptivas, a blockchain vem transformando a realidade de múltiplos setores econômicos[3].
Formada por uma cadeia de blocos virtuais, inicialmente utilizada para habilitar trocas de criptomoedas, a ferramenta funciona como um grande livro de registros no qual todas as transações ficam armazenadas de maneira segura, sem que alterações sejam possíveis, sem autorização dos envolvidos[4].
Nesse contexto, alguns autores apontam que a tecnologia poderia agregar camadas adicionais de segurança e dispensar os serviços atualmente desenvolvidos pelos cartórios de registros de imóveis[5]. Ao permitir que as transações sejam realizadas no ambiente virtual, argumenta-se que os serviços registrais seriam menos custosos, mais seguros e transparentes para todos os envolvidos.
Este estudo tem como objetivo demonstrar como a adoção da tecnologia blockchain pode transformar o ambiente de registro e imobiliário no Brasil, sem menosprezar que o Registro de Imóveis executa relevante função pública. A investigação das potencialidades da tecnologia blockchain serão evidenciadas levando em conta a experiência de outra Nação (a Suécia), que, desde 2016 tem aprimorado o seu sistema registral, antes descrito como pouco confiável, lento e custoso aos envolvidos.
Apesar da função desenvolvida pelos nossos Cartórios, não podemos esquecer que o Registro de Imóveis visa atender à comunidade e promover o bem comum. Longe de ser uma reserva de mercado, os registradores precisam oferecer serviços necessários, modernos, rápidos, seguros, com pouco custos, confiáveis e com conforto aos seus usuários.
No limite, a sociedade pode repensar a função atribuída ao Registro de Imóveis, que, num futuro próximo, pode se tornar tão obsoleta quanto a conferência física de assinatura realizada em cartório, em face das facilidades da “assinatura digital”.
- O que é a tecnologia Blockchain?
A indústria tem sido revolucionada pelos avanços promovidos pela tecnologia Blockchain,[6] que permite o armazenamento, a validação e a troca de informações de forma descentralizada e segura. Em termos sintéticos, a tecnologia não passa de um registro digital onde transações ou dados são anotados em blocos e encadeados de forma cronológica. Cada bloco contém informações como dados, hora e uma referência ao bloco anterior, formando assim uma cadeia de informações em forma de blocos (blockchain).
Uma das principais características da tecnologia blockchain é sua segurança. Como os dados são armazenados de forma descentralizada, é muito difícil que alguém consiga corromper ou alterar os dados registrados. Assim, se uma informação for objeto de registro em um bloco da cadeia, ela não pode ser modificada sem que todas as pessoas na rede concordem com essa alteração, o que torna a tecnologia blockchain mais segura.
A implementação da tecnologia blockchain tem o potencial de promover uma revolução em diversos setores da economia, abrangendo desde a cadeia de suprimentos até a escrituração de créditos tributários, saúde, finanças públicas e privadas, votação eletrônica, entre outros. Essa tecnologia traz uma série de vantagens e benefícios para esses setores, como maior transparência, segurança e eficiência nos processos.
No mercado imobiliário, o uso da tecnologia permite a realização de transações de propriedade exclusivamente entre particulares, dispensando a necessidade de intermediários. No limite, a tecnologia blockchain tem, em tese, o potencial de eliminar a presença de notários, registradores, corretoras e instituições financeiras de uma só vez. Essa tecnologia possibilita a transação de qualquer ativo de valor, permitindo o rastreamento e a verificação, incluindo registros de propriedade. Desta forma, as transações imobiliárias podem ser realizadas de forma mais ágil, segura e eficiente, trazendo benefícios tanto para os compradores quanto para os vendedores em termos de custos.
- Como a tecnologia bockchain supera os tradicionais métodos de registro de imóveis
Os serviços de registro de imóveis, conforme previsto no artigo 236 da Constituição Federal de 1988, são realizados de forma privada, mediante delegação do Poder Público. A principal finalidade desses serviços é garantir a certeza, publicidade, segurança e eficácia dos negócios jurídicos envolvendo direitos reais e de direitos pessoais que incidem sobre a propriedade imobiliária.
É no registro de imóveis que são feitos o registro e a averbação dos títulos constitutivos, declaratórios, translativos e extintivos de direitos reais sobre bens imóveis, quer para sua disposição, quer para sua validade perante terceiros. Inspirado no sistema germânico em que prepondera a transcrição como elemento de certeza absoluta da propriedade, o art. 1.245 do CCB/2002 prevê que o sistema imobiliário brasileiro exige dois requisitos para a transmissão da propriedade: título e modo.[7]
O título pode ser de diferentes tipos, variando de um instrumento particular, uma escritura pública, uma decisão judicial capaz de ensejar à transmissão, i.e., o deslocamento patrimonial de um titular ao outro. A transmissão da propriedade imobiliária, se constitui por ato entre vivos por meio do registro do título, que pode ser por escritura pública, na forma do art. 180 CCB/2002,[8] ou por instrumento particular, caso o valor do imóvel seja menor que 30 salários mínimos. Enquanto os documentos não forem submetidos ao ato de registro visando constituição do direito que será lançado na matrícula do imóvel,[9] tais documentos produzirão efeitos obrigacionais entre as partes apenas.
Já o modo diz respeito ao efetivo registro imobiliário, que se dará após observação das condicionantes legais verificadas pelo Registrador. Estando tudo em conformidade, cabe ao último efetivar o ato de registro para a constituição do direito lançado na matrícula do imóvel, o que dará publicidade a operação e proteção do respectivo direito contra todos (erga omnes).[10]
De uma forma ampla, pode-se dizer que o Serviço de Registro Imobiliário visa dar publicidade aos direitos reais imobiliários, bem como trazer informações relevantes sobre a situação dos bens imóveis e dos respectivos titulares de direitos reais. Como as pessoas podem ser devedoras de terceiros, como trabalhadores e do Fisco, não deixa de ser importante que o Poder Judiciário conte com instrumentos eletrônicos de pesquisa (atualizados em tempo real) para localização de bens e do patrimônio de devedores, em vista da satisfação das dívidas dos titulares de direitos reais.[11] Os desafios na busca de bens para pagamento de dívidas são grandes, seja pela desatualização dos registros, pela ocultação mais simples de patrimônio, como a transferência maliciosa para o nome de terceiros (parentes, laranjas), seja pela adoção de práticas sofisticadas de blindagem patrimonial que são utilizadas para se esquivar das dívidas cobradas via execução fiscal.
Considerando que grande parte dos direitos reais se constituem apenas com a efetivação do registro, compete ao registrador, profissional do direito dotado de fé-pública, decidir, na forma da lei, pela constituição, modificação ou extinção de direitos reais incidentes sobre o bem imóvel. Além de garantir o direito de propriedade privada, compete ao registro de imóveis a delimitação espacial de propriedade imobiliária.
Os registros de imóveis e o seu registrador assumem a missão de zelar pela segurança jurídica necessária para a fluidez do tráfico envolvendo imóveis.[12] Cabe ao registrador fazer a seleção para identificação das situações que são dignas de acesso ao registro. Levando em conta tal finalidade, alguns defeitos podem ser confrontados com os benefícios oferecidos pela tecnologia blockchain.
Um dos principais vícios dos registros de imóveis é a falta de segurança. Esses registros estão sujeitos a fraudes, falsificações e corrupção de dados. No entanto, a tecnologia blockchain oferece um alto nível de segurança devido à sua estrutura descentralizada e à criptografia utilizada para proteger as transações. Uma vez que uma transação imobiliária é registrada em um bloco da blockchain, é praticamente impossível alterar ou corromper os dados sem o consenso de todos os participantes.
Outro ponto comum nos registros de imóveis tradicionais é a falta de transparência. Muitas vezes, as informações sobre propriedades podem ser obscuras ou de difícil acesso, o que prejudica a confiança dos envolvidos e a chance do Poder Público fiscalizar, em tempo real, o deslocamento patrimonial realizado em vistas de fraudar credores, dentre eles, as próprias Fazendas Públicas.
Isso não ocorre com a tecnologia blockchain quando utilizada para o bem comum da população, na qual todas as transações registradas podem ser visíveis e disponíveis para todos ou alguns participantes da rede. Isso aumenta a confiança e a prestação de contas, pois as transações imobiliárias podem ser verificadas e auditadas por qualquer pessoa interessada ou encarregada do munus público.
A integridade dos dados é outro ponto fraco dos registros de imóveis convencionais. Esses registros estão sujeitos a erros humanos, perdas de documentos e até mesmo a possibilidade de falsificação de informações. No entanto, a tecnologia blockchain garante a integridade dos dados, uma vez que as informações imobiliárias registradas em um bloco não podem ser alteradas ou apagadas sem o consenso dos envolvidos. Isso evita a possibilidade de falsificação ou corrupção das informações, que podem ser supervisionadas por todos.
Além disso, os registros de imóveis tradicionais podem ser burocráticos e demorados, envolvendo vários intermediários e processos manuais com elevado custo. A tecnologia blockchain, ao contrário, elimina a necessidade de funcionários dos registros de imóveis e de certos intermediários, como bancos ou instituições financeiras, que conseguem auferir lucro com as intermediações.
Neste aspecto, a tecnologia pode ser utilizada tanto na redução dos custos quanto do tempo de processamento das transações imobiliárias. A automação dos processos por meio do blockchain também aumenta a eficiência e elimina a necessidade de reconciliação manual de dados.
A descentralização é outro aspecto em que os registos de imóveis tradicionais falham. Esses registros são controlados pelas autoridades centrais, o que pode gerar desigualdades e falta de transparência. No entanto, a blockchain é uma tecnologia descentralizada, garantindo que nenhum participante tenha controle absoluto sobre os dados ou as transações imobiliárias. Isso promove a igualdade e a democratização de um sistema que deveria ser de domínio público.
A descentralização necessária não importa na ausência estatal no campo registral Para fornecer um protocolo que permita uma transação imobiliária completa, com as mesmas garantias aos signatários e terceiros dos procedimentos atuais, Garcia-Teruel[13] salienta que a blockchain deve atender aos seguintes critérios:
- Blockchain permissiva controlada por autoridades públicas: idealmente, com essa característica, as autoridades públicas podem garantir que a transferência de propriedade imobiliária atenda aos padrões legais mínimos para as partes envolvidas. O consenso deve ser administrado por autoridades públicas, utilizando o modelo de prova de autoridade, no qual a administração pública valida qualquer alteração na cadeia. Isso é necessário para garantir que todas as transações sejam aprovadas apenas quando os requisitos legais são atendidos, controlar os custos, evitar que o registro se torne economicamente impossível para cidadãos de baixa renda e verificar a legalidade do contrato e possíveis cláusulas injustas.
- A blockchain deve ser vinculada a uma identificação digital oficial, permitindo a transação apenas com acesso legítimo, evitando, por exemplo, que menores peçam um empréstimo hipotecário ou vendam uma casa sem ter a capacidade legal para fazê-lo.
Por fim, a rastreabilidade é um benefício oferecido pela tecnologia blockchain que supera as limitações dos registros de imóveis convencionais. Embora os registros tradicionais não possam fornecer um histórico completo e confiável das transações imobiliárias, o blockchain permite rastrear o histórico completo de uma transação desde o início até o momento atual. Isso é especialmente útil em setores como a cadeia de suprimentos, onde a rastreabilidade é fundamental para garantir a proteção e a procedência dos produtos imobiliários.
Concluindo, a tecnologia blockchain apresenta uma série de benefícios que podem superar os defeitos típicos dos registros de imóveis ocasionais. Com maior segurança, transparência, integridade dos dados, eficiência, descentralização e rastreabilidade, a blockchain tem o potencial de revolucionar o setor de registro de imóveis, tornando as transações mais confiáveis, rápidas e acessíveis para todos os envolvidos.
- Conciliando a tecnologia blockchain com os métodos tradicionais de registro de propriedade: a experiência da Suécia
Sob a responsabilidade parcial das Lantmäteriet, uma agência de registro de terras, as transações imobiliárias na Suécia eram consideradas pouco transparentes,[14] lentas,[15] onerosas e apresentavam contradições imputáveis a erros humanos. A falta de atualização dos registros de propriedade ensejava, de modo semelhante, défice fiscalizatório por parte das autoridades públicas competentes para lançar tributos e investigar atividades suspeitas.
Em resposta aos desafios referidos, foi desenvolvido um projeto de implementação de testes para combinar registros tradicionais de imóveis com registros digitais na blockchain.
Este projeto envolveu entidades públicas e privadas e teve como objetivo reduzir os custos envolvidos no processo registral e as assimetrias de informação entre os particulares em geral, os órgãos registrais e demais órgãos estatais interessados nas atividades que envolviam o deslocamento patrimonial de propriedades. Como referido, a tecnologia blockchain tem sido utilizada para permitir que todas as partes envolvidas (inclusive o Fisco) monitorem o andamento da transação de forma transparente, confiável e em tempo real.[16]Essa abordagem híbrida busca aproveitar os benefícios da tecnologia blockchain, como segurança e transparência, ao mesmo tempo em que mantém a validade legal e a confiança estatal nos registros imobiliários tradicionais.
Em 2016, foi desenvolvido um projeto de implementação de testes para combinar registros tradicionais de imóveis com registros digitais na blockchain, gerida por entidades públicas e privadas.
O programa consegue reduzir os custos envolvidos no processo registral e as assimetrias de informação. Tudo é feito de modo a permitir que todas as partes monitorem o andamento da transação, cujo processo imobiliário termina no registro imobiliário, fora da rede blockchain. A tecnologia permite liberar os Registros de verificação de documentos e demais informações, fora do ambiente tornado seguros pelo uso de firewalls.
Esse modelo de “registro híbrido” ou “registro dual” visa aproveitar os benefícios da tecnologia blockchain, como segurança e transparência, ao mesmo tempo em que mantêm a confiança e a acessibilidade dos métodos tradicionais de registro imobiliário.
Nesse modelo, os registros de imóveis continuam a ser mantidos de forma tradicional, com os órgãos competentes responsáveis por atualizar e manter os registros financeiros. No entanto, uma cópia digital desses registros é criada e registrada em uma blockchain, possibilitando uma eventual transição para o modelo totalmente digital ao longo do tempo. Atualmente, a cópia digital na blockchain atua como uma camada adicional de segurança, transparência e integridade dos registros. Ela pode ser acessada por meio de uma interface digital (smatphone, por exemplo), permitindo que os usuários verifiquem a situação dos registros imobiliários em tempo real, sem necessidade de deslocamento ou custos adicionais.
Como o sistema é rápido, transparente e eficiente, os auditores também conseguem desempenhar a sua função em tempo real, o que reduz os custos estatais com solicitação de documentos e diligencias desnecessárias ao órgão registral.
O registro dual é benéfico pois mantém a confiança e a familiaridade dos cidadãos e envolvidos com os métodos tradicionais de registro de imóveis, que são amplamente aceitos e reconhecidos. Por outro lado, a tecnologia blockchain traz benefícios de segurança, transparência e eficiência para o processo de registro. A comunidade ganha como um todo, na medida em que as autoridades públicas de repressão às práticas criminosas também têm acesso às movimentações potencialmente atípicas envolvendo bens em tempo real, situação que previne os crimes de lavagem de dinheiro e que dependam da ocultação de patrimônio.
No entanto, é importante ressaltar que a implementação de um registro híbrido requer cooperação entre os órgãos responsáveis pelos registros de imóveis e as entidades que desenvolvem e mantêm a blockchain. Além disso, é necessário estabelecer padrões e protocolos para garantir a interoperabilidade[17] e a integração adequada entre os registros tradicionais e o blockchain.
Conclusão
Ao final do presente artigo, pôde-se concluir que a digitalização e o desenvolvimento de novas tecnologias de informação (TI) são uma das mais fortes forças de mudança na sociedade contemporânea.
Inserida no contexto transformador das novas tecnologias está a blockchain. Trata-se de um instrumento informático capaz de tornar seguras as mais distintas e complexas transações comerciais, na medida em que é capaz de dispensar, de forma simultânea, a autenticação de documentos, as cópias físicas e as assinaturas em contratos.
Além de mais segurança, o uso da tecnologia blockchain é mais transparente já que os dados ficam abertos para todos os interessados consultar. A confiança nas transações e nos documentos originais aumenta quando vários intervenientes têm acesso aos registros de verificação da blockchain. Quando os registros de verificação estiverem abertos e, sendo praticamente impossível de pessoas não autorizadas de manipular as informações ali inseridas, pode-se concluir não existir razão para alguém duvidar das informações ali depositadas.
O aumento na segurança da informação reduz os custos de transação para se efetivar negócios. Isso ocorre pois passam a ser dispensados todos os tipos de serviços auxiliares que lucram com o risco das operações. Com a instituição dos instrumentos estudados, fica patente que os cartórios de registros de imóveis podem perder parcela da sua relevância atual. Isso não quer dizer que eles serão instituições desimportantes, bastando referir o caso da Suécia.
Nessa localidade, as etapas anteriores ao efetivo registro eram longas e pouco transparentes. O próprio sistema registral realizado pelos Lantmäteriet era incapaz de manter os registros atualizados, o que era prejudicial para os agentes de fiscalização e terceiros interessados em conhecer todas as informações necessárias sobre o bem que pretende adquirir, como determinar se quem vende é realmente quem se diz proprietário, se não pesa contra o imóvel qualquer gravame ou ônus, entre outras possibilidades.
Para enfrentar esses desafios, um projeto foi desenvolvido em 2016 para combinar registros tradicionais de imóveis com registros digitais na blockchain. O projeto envolveu entidades públicas e privadas e teve como objetivo reduzir os custos envolvidos no processo registral e as assimetrias de informação entre os particulares, os órgãos registrais e demais órgãos estatais interessados nas atividades que envolviam o deslocamento patrimonial de propriedades.
A tecnologia blockchain foi utilizada para permitir que todas as partes envolvidas, incluindo o Fisco, monitorem o andamento da transação de forma transparente, confiável e em tempo real. O programa foi exitoso e consegue reduzir os custos envolvidos no processo registral. Tudo é feito de modo a permitir que todas as partes monitorem o andamento da transação, cujo processo imobiliário termina no registro imobiliário, fora da rede blockchain.
Vimos que a tecnologia blockchain foi introduzida na Suécia como camada adicional de segurança. As etapas anteriores ao efetivo registro passam a ser instrumentalizadas com o auxílio da nova tecnologia, mas a finalização da operação ainda depende da chancela estatal.
O sucesso da Suécia tem inspirado outros países a estabelecer parcerias com instituições privadas para implementar tecnologia em seus sistemas de registro. Ao nosso sentir, o Brasil pode se beneficiar desta tecnologia que já tem revolucionado o sistema financeiro e o mercado de capitais.
Em conclusão, a introdução da tecnologia blockchain representa uma oportunidade promissora para aprimorar significativamente o modelo registral brasileiro. Ao invés de substituí-lo, a blockchain pode ser uma valiosa complementação, oferecendo melhorias substanciais em eficiência, segurança e redução de custos. A integração cuidadosa dessa inovação no sistema existente pode contribuir para uma gestão mais eficaz, transparente e confiável dos registros, beneficiando tanto as partes envolvidas quanto as autoridades responsáveis.
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The Land registry in the blochchain. Disponível em: https://ica-it.org/pdf/Blockchain_Landregistry_Report.pdf. Consultado em: 01.11.2023.
[1] Doutor em Direito pela UFRGS e Mestre em Direito Econômico, Financeiro e Tributário pela USP. Pós-Doutorando no Departamento de Direito Público e Filosofia do Direito da Faculdade de Direito da UFRGS. Professor em cursos de graduação e pós-graduação. Pesquisador da ABES.
[2] Procuradora do Município de Porto Alegre. Doutora e Mestre em Direito pela UFRGS. Pós-Doutorado no Departamento de Direito Público e Filosofia do Direito da Faculdade de Direito da UFRGS (2019 – 2020). Encarregada pela Proteção de Dados Pessoais na PGM/POA. Professora em cursos de graduação, pós-graduação e de capacitação profissional.
[3] A primeira aplicação prática da tecnologia foram as criptomoedas, já que o protocolo resolveu problemas de confiança para transações financeiras eletrônicas utilizando a tecnologia peer to peer e, assim, eliminando a necessidade de terceiros (como uma instituição financeira e, até mesmo, o Estado). HASTREITER, Michele; RIBEIRO, Marcia Carla Pereira . Conflitos de leis e jurisdições nas transações celebradas a partir da blockchain. Revista Opinião Jurídica, Fortaleza,, v. 20, p. 60-82, 2022.
[4] Em outubro de 2008, Satoshi Nakamoto apresentou o Bitcoin, um sistema de dinheiro eletrônico peer-to-peer que usa prova criptográfica em vez de confiança. Pela primeira vez, as transações de valor podiam ocorrer diretamente entre partes distantes, sem a necessidade de intermediários. Através de uma combinação inteligente de criptografia e teoria dos jogos, o ‘blockchain’ do Bitcoin, um livro-razão de transações distribuído e público, poderia ser usado por qualquer participante na rede para verificar e liquidar transações na criptomoeda de forma econômica. Ao incentivar transações legítimas e usar um sistema de consenso descentralizado, o Bitcoin tornou-se a primeira plataforma a operar em grande escala sem a necessidade de uma entidade central, possibilitando a transferência segura de direitos de propriedade digital. (Catalini, Christian; Gans, Joshua S., Some Simple Economics of the Blockchain. Rotman School of Management, Massachusetts, Working Paper, n. 2874598, MIT Sloan Research Paper, n. 5191-16, 2019).
[5] Dentro do setor jurídico, há muita empolgação sobre a possibilidade de explorar o blockchain como um registro imobiliário seguro, especialmente devido às potenciais economias para os consumidores e às características de segurança oferecidas pela blockchain. Países que começaram a explorar a possibilidade de registros imobiliários baseados em blockchain incluem Suécia, Geórgia, Ucrânia, Dubai, Brasil e Gana. Alguns países, como os Países Baixos, foram além, explorando como a Inteligência Artificial (“IA”) pode ser incorporada à tecnologia blockchain. (Ooi, Vincent; Soh, Kian Peng; Soh, Jerrold. Blockchain Land Transfers: Technology, Promises, and Perils. Computer Law & Security Review, 1-13, SMU Centre for AI & Data Governance Research Paper 04/2022, 2022).
[6] De uma forma mais completa, pode-se dizer que a blockchain é uma tecnologia descentralizada que consiste em uma lista contínua de blocos interligados por criptografia. Esses blocos são registrados e conectados entre si, formando uma rede peer-to-peer. Em outras palavras, a blockchain é um livro de registros onde as transações são registradas de forma anônima. Ele funciona como um livro-razão distribuído, em que nenhuma informação é registrada de forma anônima e replicada em uma rede digital que conecta os computadores de todos os participantes. Essa rede é atualizada regularmente, garantindo que todos os participantes tenham acesso aos mesmos dados, sem a necessidade de uma autoridade centralizada para validar as informações.
Segundo Tepedino e Silva, a sofisticação e a complexidade dos smart contracts têm crescido exponencialmente a partir da difusão de tecnologias com a das blockchains. (Tepedino, Gustavo; Silva, Rodrigo. “Smart contracts” e as novas perspectivas de gestão do risco contratual, Revista de Ciências Jurídicas , v. 26, p. 1-12, 2021).
[7] “Vê-se do dispositivo que, no Direito brasileiro, não basta o contrato para operar-se a transferência. Necessário é o registro imobiliário, contrariamente ao que ocorria no Direito Romano, onde a aquisição da propriedade se fazia pela entrega da coisa ao adquirente pela traditio”. (RIZZARDO, Arnaldo. Direito das Coisas. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012. p. 316). Como anota Marco Aurélio Viana, “Uma coisa é um negócio que cria a obrigação de transferir; e outra, aquele que transfere, que se opera pela inscrição no Registro Imobiliário”. (VIANA, Marco Aurélio. Teoria e Prática do Direito das Coisas. São Paulo: Saraiva, 1986. p. 56).
[8] “Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País”.
[9] Segundo Loureiro, a matrícula é o “assento que antecede o registro, pelo qual se individualiza o imóvel, servindo de base para as inscrições de todas as mutações jurídico-reais relativas ao bem matriculado. A matrícula, portanto, é o polo aglutinador de todos os registros e averbações referentes ao imóvel. O registro, como foi visto, é o assento pelo qual se opera a transmissão do imóvel (ou declara a nova titularidade, quando a transmissão se dá por usucapião ou sucessão), ou se constitui direito real, entre outras hipóteses (v.g., penhora, citação em ação reipersecutória, etc.). A averbação, por sua vez. é o assento acessório que modifica o teor do registro”. (LOUREIRO, Luiz Guilherme. Registros Públicos Teoria e Prática. 8. ed. Salvador: Jus Podivm, 2017. p. 633).
[10] AVVAD, Pedro Elias. Direito imobiliário. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p. 80; SALLES, Venicio Antonio de Paula. Direito registral imobiliário. São Paulo: Saraiva, 2006. pp. 3-4.
[11]Ações neste sentido já vem sendo desenvolvidas por meio de regulamentação do CNJ.
[12]. Sobre o tema, conferir: SANTOS, Ozéias J. Manual dos Registradores. 5. ed. São Paulo: Vale do Mogi Editora, 2013. p. 555
[13] Garcia-Teruel, Rosa. Legal challenges and opportunities of blockchain technology in the real estate sector. Journal of Property, Planning and Environmental Law,Vol. 12 No. 2, 2020 pp. 129-145.
[14] “One of the problems is that Lantmäteriet is only involved in a few steps at the end of the real estate transactions. As a consequence of this the majority of the process is not transparent, in other words, visible to the public or other stakeholders”. (The Land registry in the blochchain. Disponível em: https://ica-it.org/pdf/Blockchain_Landregistry_Report.pdf. Consultado em: 01.11.2023).
[15] “Another problem is that the system is slow at registering real estate transactions. The time between the signing a legally binding purchasing contract and when Lantmäteriet receives the bill of sale and make the approval of the title is often three to six months”. The Land registry in the blochchain. Disponível em: https://ica-it.org/pdf/Blockchain_Landregistry_Report.pdf. Consultado em: 01.11.2023.
[16] “In practice, confidence in the original transactions and documents improves when several actors have access to the blockchain’s verification records. When the verification records are open and demonstrably difficult to manipulate, there is no reason for questioning them, and trust and confidence in them grow significantly, therefore the epithet ‘the trust machine’ is valid. There is a parallel with the right of access to public records in Sweden. Openness and transparency of public documents and decisions creates trust in government agencies and in the welfare society. Anybody can request documents according to the principle of right of access. The blockchain allows many people — sometimes anyone — to check the verification records. Therefore everyone can trust that the person who has the original document, and who can recreate the verification records, is telling the truth”. The Land registry in the blochchain. Disponível em: https://ica-it.org/pdf/Blockchain_Landregistry_Report.pdf. Consultado em: 09.11.2023.
[17] Um sistema interoperável ou a interoperabilidade diz respeito à capacidade de comunicação, execução de programas ou a transferência de dados entre diversas unidades funcionais, sem que haja a necessidade de conhecimento das características exclusivas de cada unidade. A temática de um sistema interoperável é abrangida na ISO/IEC 2382–01.
Assim, é possível definir a interoperabilidade de dados da seguinte forma: “a capacidade dos sistemas de tecnologia, informação e comunicação, e os processos que estes suportam, de compartilhar dados e trocar informações e conhecimento, a partir de mecanismos de compatibilização de acesso e formato”. (LAPIN. Nota Técnica 10 Recomendações para a Interoperabilidade de Dados na Administração Pública. Disponível em: <https://lapin.org.br/2021/05/18/nota-tecnica-interoperabilidade-de-dados-na-administracao-publica/>. Acesso em 3 de nov. de 2023).