Responsabilização ampla de empresas é perigosa e está acontecendo sem análise
profunda de potenciais resultados
Thiago Camargo
Advogado, mestre em administração pública pela Universidade Columbia e diretor da Prospectiva
Consultoria e sócio do ALE Advogados. Foi secretário de Políticas Digitais do MCTIC (Ministério
da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações) e membro do Comitê Gestor da Internet no
Brasil
[RESUMO] Autor argumenta que, embora o clamor social por regulação de plataformas digitais (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2023/02/oito-medidas-para-regular-big-techsgarantindo-liberdade-de-expressao.shtml) seja compreensível, diversos aspectos da atividade já são objeto do ordenamento jurídico brasileiro, como a punição de crimes cometidos virtualmente. Responsabilizar plataformas por opiniões postadas ou pelo recolhimento de impostos de transações pode ter implicações negativas para empresas e usuários.
O ano do bug do milênio (https://www1.folha.uol.com.br/fsp/informat/fr151002.htm), 1999. Sem saber que sequer arranhávamos as possibilidades da revolução digital e maravilhados com as oportunidades oferecidas pelas tecnologias anteriores, vimos o anúncio dos catastróficos eventos que poderiam acontecer, pois alguns computadores não saberiam, supostamente, contar até o ano 2.000. O sistema financeiro poderia colapsar, aviões poderiam simplesmente cair, tudo poderia parar de funcionar.
Esse ano também foi o melhor do cinema https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2019/01/entendapor-que-1999-gerou-obras-primas-como-matrix-e-o-sexto-sentido.shtml). Não consigo me lembrar de outro
ano em que tantos filmes bons tenham sido lançados no mesmo espaço de 12 meses: “Clube da Luta”, “À Espera de um Milagre”, “Beleza Americana”, “O Sexto Sentido”, “De Olhos Bem Fechados”, “Um Lugar Chamado Notting Hill”.
Entre tantos filmes marcantes, “Matrix” pode não ter sido o melhor, mas, na minha opinião, foi o mais importante de 1999. Mudou a história da cinematografia, redefiniu a estética e representou, melhor que qualquer outro, o seu tempo. Imaginávamos um futuro, víamos risco e buscávamos um herói.
Em “Matrix”, o herói era Neo, um programador que também era “o escolhido” para nos salvar a supremacia das máquinas. Neo era o futuro: usando tecnologia e a força das ideias, ele defenderia a liberdade contra os robôs que que se alimentavam de uma energia não sustentável e representavam o
passado. Neo personificava a revolução digital.
A revolução digital trouxe a inclusão de bilhões de pessoas em um espaço conectado, em que todos podem exercer seu talento, produzir valor e expor suas ideias. Uma ferramenta de ascensão social, distribuição praticamente ilimitada do conhecimento, o fim das barreiras para empreender e a superação
dos limites geográficos para se alcançar corações, mentes e consumidores.
Tudo isso resultou em um processo de plataformização da vida (https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2022/03/trabalho-por-app-pode-estar-empurrando-pessoas-para-a-direita-dizantropologa.shtml) e a maneira como conversamos, consumimos conteúdo, comemos,
nos deslocamos, exercemos nossas atividades profissionais, nos relacionamos física e emocionalmente foi transformada ou facilitada. No entanto, assim como o herói que vive tempo suficiente para virar vilão, nesse momento, as plataformas, que foram instrumentos de mudança de nossas vidas, são agora o
inimigo número um para uma parte da sociedade ou, ao menos, o alvo prioritário de tentativas de regulação.
O clamor por regulação é compreensível (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2023/02/oitomedidas-para-regular-big-techs-garantindo-liberdade-de-expressao.shtml), já que todo todo ambiente ou atividade que pode causar escassez de recursos essenciais ou problemas sistêmicos necessita de regulação e cuidado estatal para que a vida em sociedade funcione adequadamente.
Só não acho compreensível a ideia de que não exista regulação, pois ela já existe. A livre expressão do pensamento é regulada, modulada por limites legais e com vedação do anonimato, as relações trabalhistas são reguladas, a imprensa é regulada, o mercado publicitário é regulado e autorregulado, os
direitos autorais são regulados, a proteção de crianças, adolescentes e grupos minoritários é regulada, a proteção da intimidade e da honra é regulada, a defesa do Estado democrático de Direito é regulada. Não falta regulação ou autorregulação, e é por isso que vemos postagens removidas, contas banidas,
processos judiciais, investigações e prisões.
Esse clima de que é necessário “fazer algo para resolver o problema” revela que há dificuldade em se definir qual é o verdadeiro problema. Na dificuldade de resolver os problemas, um certo pacto social concede às plataformas um aspecto paraestatal, como se fossem organizações de interesse social e não
somente empresas.
O Marco Civil da Internet (https://www1.folha.uol.com.br/poder/2023/02/mp-de-lula-para-regular-golpismo-nasredes-levanta-divergencia-sobre-marco-civil.shtml) —tão à frente do seu tempo e, no geral, o melhor pedaço de normatização da vida digital brasileira— limitou a responsabilidade das plataformas por entender que os provedores de aplicações são empresas. Essa limitação de responsabilidade, que agora está sob ataque em várias frentes, foi e é fundamental para o crescimento da brasilidade digital. As pessoas são responsáveis pelo que falam, vendem ou praticam com ou sem intermediação de uma plataforma.
Isso significa que as plataformas podem simplesmente deixar o espaço aberto para que se faça o que quiser? Não. Como são empresas, as plataformas precisam manter um espaço saudável, que retenha os seus consumidores/usuários e, por isso, buscam criar regras de comunidade. Não funciona para extirpar todos os males do mundo
(https://www1.folha.uol.com.br/poder/2022/02/entenda-diferencas-entre-regras-para-redes-sociais-nas-eleicoes-de-eua-ebrasil.shtml), mas mantém uma regra geral. É mais ou menos como todas as outras leis: não impedem que problemas aconteçam, apenas criam regras gerais que permitem ações corretivas ou punitivas quando alguém as infringe.
Já existe ordenamento jurídico para punir qualquer crime ou tentativa que ocorra com auxílio de plataformas. Quando as autoridades fazem seu papel, os crimes e seus perpetradores pagam por isso, como temos visto acontecer repetidamente nos últimos meses. As centenas de prisões resultantes das
operações de repressão à tentativa de golpe em 8 de janeiro (https://www1.folha.uol.com.br/poder/2023/03/moraes-mandar-soltar-mais-130-acusados-de-atuacao-no-ataque-golpista-de81.shtml) mostram que temos mais sucesso em investigar crimes organizados pelo
Telegram que homicídios, por exemplo.
A proposta de transparência dos algoritmos de promoção de conteúdo parece uma boa ideia? Talvez, mas facilitaria a descoberta, pelos principais interessados, de como promover um conteúdo nocivo de forma ainda mais direcionada. Aumentar a responsabilidade das plataformas sobre o que nelas circula pode ser uma boa ideia? Talvez, mas daríamos a elas o papel de
censoras e deixaríamos o debate público sob o controle de empresas estrangeiras. Intervir na relação das empresas com os trabalhadores que utilizam grandes plataformas para exercer alguma atividade profissional faz sentido para proteger o trabalhador, mas o trabalhador quer se reconhecer,
funcionalmente, como empregado de tal empresa?
De todos os debates sobre a regulação de plataformas, o mais perigoso é o da responsabilidade das mesmas. Falo de responsabilidade de maneira ampla: a responsabilidade sobre opinião de terceiros, a responsabilidade tributária de vendas realizadas em seu espaço e até mesmo a responsabilidade criminal,
como a venda de produtos falsificados ou fruto de descaminho. Esse debate é perigoso, porque, embora empolgante, está acontecendo em várias arenas sem análise profunda dos potenciais resultados.
Já há decisão judicial obrigando marketplaces a recolher impostos de vendas realizadas em suas plataformas (https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2022/03/receita-federal-mirasites-de-compras-estrangeiros.shtml). Caso isso se torne regra, os marketplaces terão que colocar salvaguardas para o recolhimento de imposto, encarecendo o custo para usuário que vende e, consequentemente, para o consumidor. Como existe a possibilidade de sonegação, a conta é dividida para que todos os que não
sonegam a paguem. É a punição da honestidade.
Problema similar pode surgir na revisão da responsabilidade das plataformas sobre a opinião de terceiros. Se a plataforma se tornar responsável, os incentivos econômicos para que removam ou recusem conteúdo e usuários aumentarão. Embora pareça uma solução para obrigar as plataformas a
atuarem ativamente na defesa da democracia, ignorando que já existe um aparato estatal bem-remunerado para ocupar esse posto, isso limitará o compartilhamento de conhecimento, da exposição de ideias e da circulação de produtos.
Nesse sentido, um importante estudo foi divulgado pelo Insper no ano passado
(https://www.insper.edu.br/noticias/redes-sociais-perderiam-r-23-bilhoes-em-valor-de-mercado-com-mudanca-de-regra/). Foi o primeiro estudo a calcular o impacto econômico de uma possível mudança
nas regras de responsabilidade das plataformas. O estudo previu “uma redução do valor de mercado estimado das empresas em R$ 27,6 bilhões de reais devido ao excesso de remoções por medo de litígio” se a regulamentação “encorajasse uma parcela maior de remoções de perfis em resposta a avisos privados e sinalizações de usuários”.
Para a empresa regulada, significa apenas ter que contratar mais advogados. Para os usuários, significa menor facilidade de, ao perder o emprego, começar seu novo negócio logo em seguida e sair do sufoco, pois antes de poder exercer qualquer atividade em uma plataforma, precisaria de uma autorização prévia
da mesma.
Mais importante ainda, os autores se debruçaram sobre os possíveis impactos em usuários: de acordo com estimativas, “o limite inferior para a perda anual no bem-estar do consumidor devido a um padrão mais rígido de responsabilidade do intermediário é de R$ 532 milhões e o limite superior é de
R$ 4,1 bilhões”.
Isso é a cara do Brasil: não discutimos como melhorar processos para resolver problemas, mas como dificultar processos na ilusão de que isso evitará o problema. Ainda assim, os problemas estão todos aí.
Por isso, existem tantas iniciativas para se regular neste momento a vida no mundo digital. Há esforços para regular, em pelo menos um aspecto, a atividade das empresas baseadas em tecnologia no Ministério do Trabalho, na Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações), na ANPD (Autoridade
Nacional de Proteção de Dados), no Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), no Ministério da Justiça, na AGU (Advocacia-Geral da União), no Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, na Secom (Secretaria de Comunicação Social), no Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação, no
Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, no Ministério das Comunicações e no GSI (Gabinete de Segurança Institucional).
Isso é natural, já que existem aspectos concorrenciais, de segurança, de relações trabalhistas, de obrigação tributária e de proteção dos direitos da personalidade. Por outro lado —e já que citei o filme “Matrix”—, isso me lembra a cena de “Matrix Reloaded” em que Neo e o antagonista agente Smith, que
havia adquirido a habilidade se clonar, lutam e todos em volta se transformam em Smith para atacar Neo. Spoiler: ninguém vence, Neo acaba tendo que fugir, enquanto a Matrix continua dominando o mundo e o agente Smith, se multiplicando.
O mais triste disso tudo é o desperdício de energia. Se tivéssemos tantas iniciativas e pessoas reunidas para discutir e resolver o fracasso do ensino de matemática nas escolas brasileiras, não estaríamos com medo do futuro, mas oconstruindo.
Podemos sair da Matrix, acabar com o clima de clube da luta e buscar melhores práticas para as plataformas com base em diálogo e regulação inteligente, sem inibir a inovação ou diminuir a liberdade do usuário responsável. Nesse momento, porém, isso talvez seja estar à espera de um milagre.
Artigo originalmente publicado na Coluna Opinião da Folha de S. Paulo em 14 de março de 2023.