Por Marcelo Almeida, Diretor de Relações Governamentais na ABES
A expressão atropelamento não tem um sentido positivo. No vernáculo, o termo é associado a colisão, esmagamento ou algo que pode provocar morte ou mutilação.
Atropelamento foi a expressão usada pela oposição para criticar a aprovação da reforma tributária no Senado Federal. Na prática, o processo de aprovação da reforma tributária no Senado resultou de um acordo político que envolveu relativizações de regras processuais que regem a matéria. Quando isso acontece, a segurança do processo gera dúvidas quanto ao resultado.
A regra constitucional é clara: a aprovação de emenda constitucional requer um quórum qualificado de 3/5 dos parlamentares, em dois turnos, em cada uma das casas legislativas – art. 60, §2º da Constituição Federal. A questão está na definição do intervalo entre os turnos.
O Regimento Interno do Senado Federal prevê um interstício entre o primeiro e o segundo turno correspondente a cinco dias – art. 362. Não foi o que aconteceu no caso da reforma tributária aprovada.
No mesmo dia em que a reforma tributária foi aprovada na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, foi aprovado um Requerimento 988/2023 que solicitou um calendário especial para a proposta da reforma tributária. A dúvida era saber o que significava o calendário especial.
Tão logo foi iniciada a sessão o imprevisível calendário especial tomou corpo. Na prática significou a aprovação da reforma em turnos seguidos, sem interstício. Assim foi feito: uma aprovação em primeiro turno com o placar de 53 votos a favor e 24 contra; no segundo turno, o placar foi exatamente o mesmo. Para cumprir o requisito constitucional de dois terços, a reforma precisava de 49 votos a favor.
A jornada da reforma tributária contou com um fator político que gerou um forte senso de modificação do sistema de pagamento de tributos no Brasil. A formação de maioria, no entanto, não autoriza a relativização das regras processuais. A obediência ao processo é fundamental para respeitar aqueles que são contra.
Existe uma razão para que se estabeleça um interstício entre os turnos. O espaço de tempo é dedicado à reflexão necessária para alcançar uma decisão madura quando se trata de alterações constitucionais. Por isso o quórum qualificado: trata-se de lei que ocupa a mais alta posição constitucional no país.
A maturidade não é a tônica do nosso processo legislativo brasileiro. Somos oportunistas com pitadas de inconsequência. O processo é iniciado e se paga para ver onde chega. Há um estresse legislativo para ver onde dá antes mesmo de pensar quais os caminhos que se deve seguir.
A evidência anterior da relativização de mudanças constitucionais já aconteceu na Reforma da Previdência. A aprovação da emenda 41, que mudou as regras de aposentadoria, já tem conta com relativizações previstas na PEC 47 para suavizar os impactos de aposentadorias no tempo de cargorias profissionais.
Considerando que a reforma tributária dependerá de normatizações infraconstitucionais para ser implementada, é difícil acreditar que permanecerá imutável por dez ou vinte anos.
A Constituição Federal completou, no último dia 5 de outubro, 35 anos. Ao que parece, a Carta Magna pode ser comparada a um sujeito de 35 anos que, a despeito de possuir condições de ter vida própria, ou mesmo constituir a própria família, prefere continuar morando com os pais a assumir novas responsabilidades. Quando nos deparamos com propostas que ganham importâncias casuísticas (a despeito de meritórias) capazes de relativizar a segurança processual necessária ao convencimento até dos derrotados, temos evidencias da falta de maturidade democrática.
A segurança jurídica é um dos principais fatores que impedem o crescimento do Brasil. Sem bases regulares sólidas, investimentos tendem a desaparecer. Isso é curioso, pois a reforma tributária objetiva a simplificação (redução do número de
impostos) exatamente para tornar o sistema mais inteligível, seguro. O processo de reforma, no entanto, não guarda correspondência com o objetivo reformador pretendido.
A reforma tributária ainda não está aprovada. No retorno à Câmara dos Deputado especula-se o fatiamento do texto: preservar o que é de consenso e discutir o dissenso em outro momento.
“Não posso afirmar se o fatiamento vai ocorrer, porque na construção do texto pode ter alguma modificação que, estruturalmente, comprometa a emenda constitucional.” Disse o Deputado Agnaldo Ribeiro. Fonte: Agência Câmara
A maturidade legislativa é uma meta que só pode ser alcançada com o tempo. Nesse particular, o respeito ao processo, notadamente aos interstícios como convite à reflexão, é fundamental para o esgotamento da necessidade e do alcance do que é possível na dimensão política, social e econômica para o Brasil.
Marcelo Almeida é Diretor de Relações Governamentais e Institucionais da Associação Brasileira de Software – ABES.