Artigo por Natália Marroni Borges*
ABES
Com o avanço acelerado do desenvolvimento tecnológico, nossa forma de viver, trabalhar e estabelecer relações sociais passou por mudanças significativas. Em pouco mais de 20 anos, acompanhamos a proliferação da Internet e das redes sociais, a popularização dos dispositivos móveis, a expansão da computação em nuvem, e, mais recentemente, a crescente aplicação do Block Chain, realidade virtual, inteligência artificial e da automação. Vivemos atualmente no que pode ser considerado o centro da revolução digital e, talvez por esse motivo, seja desafiador estruturarmos uma visão em perspectiva sobre o tema e conferirmos clareza a essas mudanças, seus efeitos e oportunidades.
Uma das estruturas com maior alcance – viabilizada pelo uso conjunto de diferentes tecnologias associada especialmente ao volume de usuários – é a das plataformas digitais, que proporcionam a conexão instantânea de pessoas, empresas e governos em diferentes partes do mundo e possibilitam o acesso a serviços e produtos de forma rápida e eficiente. Por meio destas plataformas, as possibilidades de trabalho e consumo se multiplicaram, as relações entre empresas e consumidores foram transformadas e novos modelos de negócios surgiram e vêm se consolidando ao longo dos anos.
É evidente que o uso das plataformas digitais em seus diferentes formatos apresenta implicações em diferentes contextos. Como as disciplinas não necessariamente se acompanham ao longo do tempo, observamos é a tecnologia despontando enquanto outras temáticas importantes e necessárias – dentre elas o direito, a psicologia, a sociologia – são analisadas a posteriori, criando lacunas que podem ser exploradas de maneira mal-intencionada.
Exemplos disso são a disseminação de notícias falsas, o aumento de diagnósticos de ansiedade, stress e depressão, o aumento do isolamento social, a “uberização” do trabalho, o uso indevido de dados. Como a operação destas plataformas ocorre em ambientes virtuais, fica mais difícil compreendermos seus efeitos de médio e longo prazo e estabelecermos limites claros para suas atividades e responsabilidades.
Por outro lado, é inegável o potencial das plataformas digitais no desenvolvimento da sociedade que estamos construindo. Como é natural e esperado, oportunidades provenientes da tecnologia são exploradas de maneira mais rápida pela iniciativa privada, enquanto os governos, em geral, apresentam maior lentidão na adoção e uso das potencialidades. No contexto brasileiro essa realidade não é diferente e se reflete em uma adoção massiva da população a soluções como Uber, iFood, Instagram, Twitter, Tik Tok entre tantas outras criadas quase diariamente por empresas ao redor do mundo. Seria, contudo, injusto argumentar que as plataformas digitais governamentais brasileiras estão em lado oposto a essa realidade – pois não estão.
Por mais que ocorra de forma mais lenta em comparação à iniciativa privada, observamos avanços importantes em projetos como o e-SUS, o Portal do Empreendedor, o Sistema Eletrônico do Serviço de Informação ao Cidadão (e-SIC), o Sistema de Seleção Unificada (SISU), o portal da Carteira Digital de Trânsito e a plataforma do E-GOV. Reforçando a relevância do tema, recentemente a ABES lançou um grupo de trabalho específico para aprofundamento no tema, associado ao comitê regulatório e selecionou pesquisadores para seu Think Tank que devem pautar suas investigações neste contexto.
Esses avanços fortalecem o entendimento de que as iniciativas são de fundamental importância para impulsionar a qualidade do serviço público brasileiro – associadas ao aprimoramento na relação entre o governo e o cidadão e, especialmente, à estruturação de bases de dados organizadas, robustas, “integráveis” e que proporcionem tomadas de decisão embasadas. Aliás, esse pode ser considerado um grande benefício proveniente do uso de plataformas digitais para governos: os dados.
Neste sentido, algumas oportunidades ainda orbitam a esfera governamental e um tema específico vem exponencialmente ganhando força, forma e projeção: a inteligência artificial, que tem se tornado tema central para governos em todo o mundo. O uso da IA em projetos governamentais têm o potencial de melhorar a eficiência e a transparência, bem como de aumentar a qualidade dos serviços prestados à população. Temos bons exemplos de iniciativas de sucesso no Brasil, como é o caso dos “robôs” do TCU, que atuam especialmente na identificação de padrões para detecção de indícios de irregularidades auxiliando em processos de fiscalização e controle.
Porém, como é de se esperar, as iniciativas pela adoção e uso da IA ocorrem de forma dissociada, e os esforços despendidos por cada órgão acabam por permanecer, em certo grau, isolados. Neste sentido, parte significativa dos órgãos está orientada a identificar caminhos para viabilizar o uso da IA – e, por “caminhos” entenda-se fornecedores, parcerias, infraestrutura, consultorias, treinamentos, tecnologias, estrutura interna. Para evitar que diferentes agências trabalhem em soluções semelhantes simultaneamente – gerando redundâncias e retrabalho – é apropriado consolidar essas informações em uma plataforma unificada.
Uma plataforma desenvolvida com este fim representará avanço para o país, permitindo que diferentes setores do governo acessem informações atualizadas sobre projetos em andamento, orquestrando esforços entre diferentes agências com consequente ganho de eficiência e redução de custos – que, no caso da IA, podem ser altos. A consolidação destas informações ainda tem potencial de servir como base para análises necessárias como valor de investimento, o ROI, a maturidade do desenvolvimento da Inteligência Artificial, os fatores críticos de sucesso, os dilemas éticos e como foram endereçados. Iniciativas semelhantes já podem servir como benchmarking, a exemplo da plataforma “AI Watch”, que trata da consolidação e análise de informações de projetos de IA em 29 países da União Europeia.
Projetos desta dimensão são robustos e devem, idealmente, começar pequenos e ampliar gradualmente sua atuação de forma estruturada a estratégica. Não podemos perder de vista, porém, que já existem estruturas tecnológicas para viabilizar soluções como essa e que as amarras são, em sua maioria, institucionais. Em um contexto de transformação tecnológica que ocorre de forma mais rápida do que algumas estruturas governamentais conseguem acompanhar, e, cientes disso, é importante direcionarmos a atenção ao tema e darmos os primeiros passos para pavimentar esse caminho.
Natália Marroni Borges é pesquisadora no no Think Tank da ABES, Pesquisadora membro do grupo IEA Future Lab (vinculado à Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS), Pós-doutoranda em Inteligência Artificial e Foresight e professora na UFRGS