As plataformas digitais remodelam a esfera da circulação e mudam a arquitetura do intercâmbio global
Por ABES | 3:00 pm – 29 de julho de 2025

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Os debates recentes sobre o futuro da globalização estão cada vez mais enquadrados na lente da “desglobalização”. Os analistas apontam para o declínio das taxas de comércio em relação ao PIB, a regionalização das cadeias de suprimentos e as reações nacionalistas como evidência de que o longo arco da integração econômica pode estar se revertendo. Alguns discordam da hipótese da desglobalização, concentrando-se no aumento da proporção de serviços exportados em relação ao PIB (Baldwin et al., 2024). De acordo com esses autores, a globalização não está retrocedendo, mas apenas se ajustando a uma economia global predominantemente baseada em serviços.
A questão é que tanto os proponentes quanto os detratores da hipótese da desglobalização baseiam seus argumentos no mesmo material: estatísticas comerciais. Essas métricas não conseguem captar a transformação qualitativa da globalização que está remodelando a forma como o valor, o conhecimento e a interação circulam entre as fronteiras. No centro dessa mudança está o surgimento de plataformas digitais, como Google, Instagram, TikTok e Kwai, que permitem fluxos de serviços, dados e cultura que circulam de diferentes formas e por diferentes camadas de circulação do valor (Caliskan et al., 2025). Esses fluxos não constam das estatísticas comerciais (por exemplo, serviços fornecidos digitalmente), mas são fundamentais para a interdependência econômica global.
Argumentamos que, embora a globalização visível e monetária possa estar diminuindo, uma nova forma de globalização invisível está se intensificando. Viabilizado por infraestruturas digitais e organizado por lógicas de plataforma, esse regime transcende as métricas convencionais de mercado. Ele conecta bilhões de usuários e empresas além das fronteiras por meio de serviços estruturados pela extração de dados, rastreamento de comportamento e arquiteturas de monetização proprietárias. As plataformas não se limitam a intermediar fluxos globais; elas reformulam a própria arquitetura da globalização. Esses métodos de acumulação circulam em outras camadas possibilitadas pelas plataformas digitais: a doação e o escambo complementam as trocas (Caliskan et al., 2025).
Ao integrar os atores em ecossistemas em camadas e governados por algoritmos, as plataformas promovem uma forma de globalização que é, em grande parte, invisível para as estruturas de medição existentes. Além da realidade material da desaceleração do comércio ou da fragmentação geopolítica, enfatizamos que a globalização não está retrocedendo: ela está se transformando. Para compreender sua trajetória atual e futura, devemos observar como a globalização é estruturada e vivenciada. Isso requer a atenção às dimensões não monetárias, infraestruturais e de uso intensivo de dados da interação internacional, em que a lógica das plataformas é cada vez mais dominante.
Mensuração conveniente
A maioria das estatísticas oficiais de comércio (e.g., Organização Mundial do Comércio, Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) mede os serviços entregues digitalmente com base em transações comerciais. Isso significa que elas incluem serviços digitais pagos (por exemplo, computação em nuvem, assinaturas de software-as-a-service, assinaturas de serviços de streaming, consultoria on-line). Eles excluem os serviços digitais gratuitos, mesmo que sejam transfronteiriços e amplamente consumidos, porque não há transação monetária a ser registrada. Estes serviços “gratuitos” geralmente são financiados por meio de publicidade ou monetização de dados, o que é difícil de alocar geograficamente e geralmente é registrado como parte de outras categorias de serviços (por exemplo, serviços de publicidade ou royalties de propriedade intelectual).
Isso significa que as estatísticas atuais de serviços entregues digitalmente subestimam significativamente o volume real do consumo de serviços digitais internacionais e o valor econômico gerado pelas plataformas que oferecem serviços gratuitos. Embora os serviços sejam gratuitos para os usuários, eles geram valor real (por exemplo, vídeos educativos, resultados de pesquisa, notícias); sustentam receitas de publicidade que atravessam fronteiras e extraem dados do usuário como um pagamento não monetário, que pode ser monetizado em outro lugar. Portanto, em termos econômicos, essas são trocas não monetárias que sustentam grande parte da globalização digital impulsionada por plataformas, mas são invisíveis nas estatísticas comerciais.
A Organização Mundial do Comércio reconhece a existência de fluxos digitais não monetários e sugere que, até certo ponto, essas transações já estão precificadas nas estatísticas disponíveis. Ao mesmo tempo, eles reconhecem que “No momento em que escrevemos, estão em andamento investigações para entender e quantificar melhor esses fluxos, dada sua importância no apoio às transações econômicas” (OMC, 2023, p. 29). É possível melhorar a quantificação por meio de aproximações ou considerar o preço como dado por meio de estatísticas baseadas na receita de publicidade das plataformas digitais. Mesmo assim, a natureza qualitativa dessa globalização escapa a esses esforços. E uma nova rede de fluxos de conhecimento, ideias e cultura toma forma fora das estatísticas e sob os jardins murados de algumas plataformas digitais.
O núcleo não mensurado da globalização invisível
A maioria dos serviços digitais usados globalmente é gratuita no ponto de consumo. Bilhões de pessoas acessam mecanismos de busca estrangeiros, feeds de mídia social, enciclopédias, plataformas de vídeo e serviços de mensagens sem pagar e, portanto, essas interações econômicas permanecem invisíveis para o PIB e as balanças comerciais.
As plataformas oferecem esses serviços monetizando os dados e a atenção do usuário em vez do acesso ao serviço em si. Portanto, o uso gratuito da plataforma não é “gratuito” nem sem valor. Ele representa uma transação não monetária na qual os usuários trocam dados comportamentais e atenção em troca de funcionalidade digital, conveniência e conteúdo. Essas interações, embora globais por natureza e econômicas por consequência, escapam do aparato estatístico do comércio.
O YouTube, o Bluesky e o TikTok oferecem serviços que possibilitam a comunicação e a colaboração internacionais, facilitam a difusão do conhecimento global e o intercâmbio cultural e apoiam o empreendedorismo digital (por exemplo, criadores de conteúdo, influenciadores, microexportadores). Essas plataformas atuam como infraestrutura informal para o comércio global, mesmo que nenhum pagamento ocorra no ponto de uso. Elas foram chamadas por pesquisadores italianos de “plataformas ortogonais” (Trabucchi & Buganza, 2022), porque conseguem extrair valor de “duas propostas de valor diferentes”. No final, os usuários estão trocando serviços por atenção. A plataforma funciona como um local de troca, não como um intermediário de mercado monetário tradicional; mas essa terminologia (do escambo) escapou aos pesquisadores italianos.
A opacidade das plataformas como infraestruturas globais
As plataformas funcionam como intermediárias, mas também constituem a infraestrutura por meio da qual os fluxos globais de serviços, conhecimento e dados são organizados. Elas configuram como os atores se relacionam entre si, como a visibilidade e a capacidade de descoberta são atribuídas e como as oportunidades econômicas são distribuídas.
O conceito de “stacked economization” (Caliskan et al., 2025) é útil aqui. Ele se refere à maneira como as plataformas colocam em camadas diferentes modos de coordenação econômica, incluindo presentes, permutas, escambos e trocas de mercado. Uma plataforma como o YouTube permite o intercâmbio cultural não monetário, a interação entre pares e a publicidade orientada por dados no mesmo espaço digital. O resultado é uma forma multifacetada de globalização, em que as fronteiras entre consumo, produção e participação se confundem.
Essa disposição em camadas permite que as plataformas integrem diversos atores em circuitos globais de criação de valor sem intermediários monetários tradicionais. A participação nesses ecossistemas pode ser monetizada (por exemplo, por meio de anúncios, parcerias com influenciadores ou modelos de assinatura), mas também pode permanecer não remunerada ou até mesmo não reconhecida como trabalho.
Essa forma de globalização é difícil de ser vista, quanto mais de ser governada. Os órgãos nacionais de estatística não rastreiam os serviços gratuitos consumidos além das fronteiras. As medidas do PIB e do comércio não registram o valor econômico gerado pelos usuários que contribuem para os ecossistemas das plataformas (Brynjolfsson et al., 2019). E muitas interações baseadas em plataformas operam por meio de algoritmos proprietários e arquiteturas de dados privados, tornando-os inacessíveis ao escrutínio público.

O resultado é uma crescente desconexão entre onde o valor é gerado e onde ele é registrado. Um usuário no Brasil que gera receita de publicidade para uma plataforma sediada nos EUA constitui uma exportação de atenção e dados, mas não aparecerá nos números de exportação de serviços do Brasil. Da mesma forma, uma pequena empresa na Indonésia que adquire serviços digitais por meio de plataformas de código aberto, ou que se expande por meio da visibilidade do TikTok, integra-se aos circuitos globais de inovação e comércio com um mínimo de registro oficial.
Os elementos da globalização mercantil do século XVI, como o escambo que ocorria nos empórios da Antuérpia, parecem reeditados para sua versão digital. De fato, a globalização nunca foi apenas o computo dos fluxos monetários. Junto com ele sempre estiveram os fluxos de outras naturezas, como de conhecimento, ideias e informação (Pye, 2021). Nos termos de Caliskan et al. (2025) a plataforma é um exploratorium, onde diversos tipos de fluxos se entrecruzam. Elas são as cidades mercantis do século XXI, onde feitorias, armazéns, empórios e tudo que é comercial se entrelaça com ideias, serviços globais e uma luta por monopólio sobre o direito de mediar todos estes fluxos. Dessa forma, gesta-se uma globalização que é ao mesmo tempo expansiva e pouco visível.
Implicações para a teoria e a política
A globalização invisível tem implicações para a forma como teorizamos a integração global e como elaboramos políticas para moldar seus resultados. Em primeiro lugar, ela desafia a predominância de métricas baseadas no comércio como indicadores da globalização. Conceitos como o PIB-B (Brynjolfsson et al., 2019), impostos sobre serviços digitais e auditorias de plataforma são esforços incipientes nessa direção. Precisamos de construtos que levem em conta as formas informativas, relacionais e infraestruturais de criação de valor que vão além dos mercados.
Em segundo lugar, isso levanta questões sobre a governança dos benefícios e ônus. Se a atenção do usuário e os dados comportamentais são mercadorias globais, a quem pertencem? Quem governa as infraestruturas por meio das quais eles são extraídos e monetizados? E como países ou comunidades podem negociar seus termos de participação em ecossistemas digitais dominados por poucas empresas transnacionais?
Em terceiro lugar, a política digital precisa ser atualizada para lidar com esse novo contexto. Se a globalização ocorre por meio de infraestruturas de plataforma, a discussão sobre a inserção internacional das economias em desenvolvimento por meio de cadeias globais de valor não é mais suficiente. As políticas comerciais e as políticas industriais (Bianchi & Labory, 2018) precisam ser aperfeiçoadas.
Em vez de interpretar as tendências atuais como evidência de desglobalização, propomos que a globalização está passando por uma mudança qualitativa. Dados, conhecimento, ideias, (des)informação, e sim, também serviços digitalizados, nunca foram tão globais. À medida que as plataformas digitais se tornam a infraestrutura dominante para a interação entre fronteiras, elas dão origem a uma nova forma de integração econômica: uma que é profundamente global, em grande parte não monetária e estatisticamente invisível.

Victo Silva é pesquisador no Think Tank da ABES e Pós-doutorando pela Radboud University (Holanda). Doutor em Política Científica e Tecnológica pela Universidade Estadual de Campinas (2022), Mestre em Política Científica e Tecnológica pela Universidade Estadual de Campinas (2018). As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, os posicionamentos da Associação.
Referências
Baldwin et al. (2024). Deconstructing Deglobalization: The Future of Trade is in Intermediate Services. Asian Economic Policy Review, 19, p. 18–37
Bianchi, P., & Labory, S. (2018). Industrial policy for the manufacturing revolution: Perspectives on digital globalization. Edward Elgar.
Brynjolfsson, E., Collis, A., & Eggers, F. (2019). GDP-B: Accounting for the value of new and free goods in the digital economy. AEA Papers and Proceedings, 109, p. 371–375.
Caliskan, K., MacKenzie, D., & Callon, M. (2025). Stacked economization: A research program for the study of platforms. Journal of Cultural Economy, 18(2), p. 304–331.
OMC (2023). Handbook on measuring digital trade. 2nd edition.
Pye, M, (2021). Antwerp: the glory years. Allen Lane.
Trabucchi, D., & Buganza, (2022). Landlords with no lands: a systematic literature review on hybrid multi-sided platforms and platform thinking. European Journal of Innovation Management, 25(6), p. 64-96.
*Artigo originalmente publicado no IT Forum em 29 de julho de 2025