Por Carlos Eduardo Passerani Reolon*
Nos últimos cinco ou seis anos fomos inundados com estudos, matérias, proposta e debates sobre a Proteção de Dados. Descobrimos um universo de possibilidades que não tínhamos ciência. Isso se deve, majoritariamente, à promulgação da LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados – Lei 13.709/18), que foi inspirada na GDPR (General Data Protection Regulation – 2016/679) promulgada na comunidade europeia com o intuito de proteger a privacidade daqueles que lá estão.
Por lá, o contexto acabou sendo um pouco mais natural para um regulamento amplo, pois o debate sobre privacidade nasceu muito antes – mais precisamente em 1995, quando foi editada a Diretiva 95/46 que, de certa forma, já balizava o tratamento de dados pessoais naquele continente.
Por aqui, com a chegada da LGPD em 2018, o ambiente de negócios ainda levou algum tempo até assimilar suas proposições e os impactos da não adequação. E, hoje, vemos um ambiente ainda longe do ideal, mas muito mais alinhado com as premissas da proteção de dados. Tão alinhado que, na situação atual, qualquer assunto, oferta de produto/serviço ou propositura já considera o fator privacidade de dados, colocando-a como show-stopper caso não haja um atendimento mínimo ao que se espera sobre o assunto.
Dessa forma, as novas ou “novas” tendências da sociedade sempre são confrontadas com o que se espera de privacidade para determinar se ela irá ou não vingar. E, por mais “novo” que esse conceito possa parecer, com a Inteligência Artifical não foi diferente.
Vale aqui um disclaimer sobre o termo “nova”, que está entre aspas porque a Inteligência Artifical está longe de ser nova. Estamos falando de um termo cunhado nos idos de 1950 que, desde então, ganha e perde força ao longo do tempo, com a possibilidade de máquinas imitarem humanos. Até então, mesmo quando o tema ganhava força, ainda assim não conseguia decolar, especialmente por conta das limitações dos ferramentais para aplicação de IA. É sabido que o campo de desenvolvimento da Inteligência Artificial é necessariamente o tecnológico, e que até pouco tempo não tínhamos condições de armazenamento e processamento capazes de fazer a IA se desenvolver plenamente. Porém, na última década, a evolução dos algoritmos e a oferta quase ilimitada do poder computacional fizeram o assunto ganhar o foco novamente.
Sabemos que a IA depende majoritariamente de dados para funcionar, além de potentes computadores por trás “mastigando” esses dados em tempo real e devolvendo insights para os seus usuários. Sambemos também que desde a sua concepção, a ideia sempre foi imitar o humano, e a IA ainda está longe disso. Por mais “inteligente” que ela possa ser, ainda está distante da capacidade humana de reagir a determinados estímulos. O que temos hoje são as IAs chamadas “especialistas”, ou seja, programas de computador capazes de analisar grandes massas de dados e, a partir delas, fazer inferências sobre um tema específico. E, o mais importante, por serem especialistas não tem a capacidade de mudarem de domínio. Na prática, isso significa que uma IA treinada para produzir score de crédito jamais será capaz de diagnosticar um câncer de mama, por exemplo – e nem o inverso.
Logo, podemos tirar algumas conclusões. A primeira, que a Inteligência Artificial está muito distante de substituir o homem em atividades essencialmente humanas. E a segunda, que a IA sempre demandará um grande volume de dados de treinamento para que consiga fazer tais inferências. Esses dados, por sinal, podem ser coletados do mundo real a partir de sensores físicos, extraídos da internet pública (onde a oferta é quase infinita) ou produzidos artificialmente a partir de técnicas específicas para esse fim. Ou seja, não se pode dissociar o consumo de dados com a aplicação da Inteligência Artificial.
E por que falamos de tudo isso? Pois é neste momento que os universos de IA e Proteção de Dados se misturam. Se a Inteligência Artificial demanda grandes volumes de dados, e nós cidadãos, no uso de cada vez mais ferramentas e serviços digitais (ou digitalizados) produzimos cada vez mais dados a nosso respeito, isso quer dizer que a discussão sobre IA precisa necessariamente envolver Privacidade de Dados, correto? Pensemos… hoje já dispomos de aplicações muito funcionais de Inteligência Artificial nas ofertas de chatbots (aqueles robôs que nos atendem em canais de contato de várias empresas), nas soluções de IA para análise e score de crédito, na análise de imagem capaz de diagnosticar doenças precocemente, entre inúmeras outras possibilidades. Logo, podemos inferir que, quando falamos de IA, estamos falando de Dados Pessoais? Errado! Por mais que esses argumentos possam nos levar a acreditar que estes assuntos são intrínsecos, devemos ter em mente que o universo de aplicações de Inteligência Artificial transborda os limites da privacidade de dados.
Sim, há uma imensa oferta de serviços envolvendo Inteligência Artificial e Dados Pessoais, porém, existe um horizonte consideravelmente maior de aplicações de IA que sequer resvalam em dados pessoais. Veja alguns exemplos:
- No campo do Agronegócio, temos análises estatísticas que cruzam condições climáticas, de solo e uso de defensivos, entregando as melhores combinações para cada cenário e orientando a operação de máquinas de forma autônoma.
- No campo da Indústria, temos soluções que monitoram e predizem quando uma determinada máquina pode falhar, proporcionando a otimização de processos ao longo de toda a cadeia produtiva.
- A própria previsão do tempo, que lançando mão de dados históricos cruzados a fatos correntes se mostra cada vez mais assertiva.
Esses e inúmeros outros exemplos jogam luz ao fato de que a Inteligência Artificial e a Privacidade devem ser tratadas de forma independente. Não digo aqui que devemos isolá-las em silos, uma vez que obviamente há um ponto relevante de intersecção entre os dois assuntos – porém, devemos sempre ter em mente que ainda assim são assuntos distintos. Como a Inteligência Artificial é um assunto transversal, ou seja, que irá permear a atividade humana, não devemos relegá-la a uma discussão condicionada à privacidade. É consenso que nas aplicações dependentes de dados pessoais, profissionais de privacidade devem estar envolvidos (assim como em aplicações envolvendo energia elétrica ou construção civil, nas quais os engenheiros sempre devem tomar parte, ou em aplicações envolvendo estudo de leis, nas quais os advogados devam se posicionar).
No futuro, vemos que todo profissional – independentemente do seu ramo de atuação – deverá ter algum domínio sobre Inteligência Artificial para melhor aplicá-la no seu dia a dia. Dessa forma, teremos um debate sadio sobre o uso e a aplicação de IA, sempre condicionada à cada ambiente onde esta se aplicar.
Carlos Eduardo Passerani Reolon é instrutor da ABES ACADEMY, setor de educação e formação continuada da Associação Brasileira das Empresas de Software, e Project Manager na IBM.