Por Manoel Santos, Diretor Jurídico da Associação Brasileira das Empresas de Software (ABES)
Há duas formas básicas das empresas apurarem o “lucro” para efeitos de recolhimento do Imposto de Renda Pessoa Jurídica (IRPJ) e da Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido (CSLL): (1) Lucro real, que corresponde à diferença entre as receitas totais tributáveis menos os custos e despesas dedutíveis, e o (2) Lucro presumido, que resulta da aplicação de um percentual, sobre as receitas brutas auferidas.
De acordo com a lei 9.249, em relação ao IRPJ, os percentuais básicos de apuração do lucro presumido são 1,6% para revenda de combustíveis; 8% para serviços hospitalares, assim como venda de bens; 16% para serviços de transporte e 32% prestação de serviços em geral e intermediação. Já no que concerne à CSLL, os percentuais de apuração do lucro presumido são de 32% na prestação de serviços em geral e intermediação e de 12% para as demais atividades.
Ao longo das últimas duas décadas, a RFB havia consolidado seu entendimento, tendo publicado dezenas normativas a respeito do tema, desde Solução de Consulta DISIT/SRRF07 Nº 99, de 15/04/2003, até a SC DISIT-SRRF/06 Nº 6022, de 21/07/2021, fixando o seguinte entendimento:
- “A venda (desenvolvimento e edição) de softwares prontos para o uso (standard ou de prateleira) classifica-se como venda de mercadoria, e o percentual para a determinação da base de cálculo do IRPJ é de 8% sobre a receita bruta.
- A venda (desenvolvimento) de softwares por encomenda classifica-se como prestação de serviço, e o percentual para determinação da base de cálculo do IRPJ é de 32% sobre a receita bruta.
- A realização de meros ajustes em softwares já existentes não descaracteriza a operação de venda de mercadoria, o que, consequentemente, determina a utilização do percentual de presunção, no âmbito do lucro presumido, de 8% para fins de apuração da base de cálculo do IRPJ.”
No entanto, em 7 de fevereiro de 2023, passados quase vinte anos orientando os contribuintes à apuração do lucro pelo percentual de 8%, a Receita Federal do Brasil publicou a Solução de Consulta COSIT Nº 36, modificando esse entendimento – alteração que resultará em uma brutal elevação da carga tributária para as empresas que comercializam programas de computador (software) ditos “padronizados” – eis que a norma trouxe nova interpretação aos dizeres do art. 15, § 1º, III, alínea “a” da lei nº 9.249/95, definindo o percentual de 32% sobre a receita bruta para apuração do lucro presumido em relação às receitas com “softwares prontos para o uso (standard ou de prateleira), apregoando que:
Para as atividades de licenciamento ou cessão de direito de uso de programas de computador padronizados ou customizados em pequena extensão, o percentual para determinação da base de cálculo do IRPJ, de que trata o caput do art. 15 da Lei nº 9.249, de 1995, é de 32%, previsto para prestação de serviços, na alínea “a” do inciso III desse mesmo artigo.”
O efeito prático da decisão da RFB é que as empresas que adotavam tal sistemática, agora terão que presumir o lucro por um percentual quatro vezes mais elevado: 32% e não mais 8%! Aplicando-se a nova interpretação da RFB, o desembolso com IRPJ e da CSLL passará a representar, entre 7,68% e 10,88% do faturamento – na interpretação anterior, a somatória perfazia entre 2,28% e 3,08% da receita. O ônus adicional será entre 5,40% e 7,8% sobre as receitas das empresas.
Há mais de uma década a ABES – Associação Brasileira das Empresas de Software vinha alertando seus associados sobre os riscos dessa mudança interpretativa acontecer, ao mesmo tempo em que orientava as empresas a adotarem cautelas na sua escrituração contábil e fiscal, de modo a evitar que a temida nova interpretação trouxesse impactos em relação às operações pretéritas. Nessa direção, por exemplo, consulte-se o “ORIENTADOR ABES – MAIO /2011” – TRIBUTOS DEVIDOS NA COMERCIALIZAÇÃO DE SOFTWARE.
No que tange ao “efeito pretérito”, de modo coerente – reconheça-se – a Solução de Consulta nº 36 sobre comento ratificou expressamente que os comandos contidos nessa norma não se aplicarão de forma retroativa, eis que o item 36 assim dispõe:
“Nos termos do art. 26 da Instrução Normativa RFB nº 2.058, de 2021, e do inciso I do art. 1º do Ato Declaratório Interpretativo RFB nº 4, de 25 de novembro de 2022, na hipótese de alteração do entendimento expresso em solução de consulta, a nova orientação, se desfavorável ao consulente, será aplicada apenas aos fatos geradores ocorridos após a data de sua publicação na Imprensa Oficial ou após a data da ciência da solução pelo consulente.”
Resulta, portanto, que em relação aos períodos de apuração encerrados até 15 de fevereiro de 2023, as empresas que adotavam essa sistemática continuarão apurando a presunção de lucro, para fins de apuração do IRPJ e da CSLL, pela alíquota de 8% sobre as receitas, sem risco em relação aos períodos de apuração anteriores. Isso significa que as empresas que aplicavam a presunção de lucros a 8% não serão obrigadas a recolher diferenças em relação ao passado. Aplicar-se-á a nova regra somente de agora em diante.
De acordo com o art. 33 e o art. 39, § 2º IN RFB nº 2.058, de 9/12/2021, a Solução de Consulta Cosit e a Solução de Divergência, a partir da data de sua publicação, têm efeito vinculante no âmbito da RFB, ou seja, respaldam o sujeito passivo que as aplicar, desde que se enquadre na hipótese por elas abrangida, independentemente de ter sido ele quem tenha formulado a Consulta.
Outro ponto para reflexão reside no fato de que os governos não podem cobrar tributos no mesmo exercício financeiro em que foi publicada a lei que os instituiu ou aumentou, nem antes de decorridos noventa dias da data da publicação da norma. São os chamados princípios da anterioridade (noventena e anualidade) que estão dispostos no artigo 150, inciso III, da CF. Há tributos que estão sujeitos à noventena, outros que estão sujeitos à anualidade e outros que se submetem aos dois (noventena e anualidade). É inegável que a SC nº 36 representa elevação do IRPJ (sujeito apenas à anualidade) e da CSLL (sujeita apenas à noventena).
Assim, muito embora a Solução de Consulta nº 36 não seja uma “lei” no sentido estrito – pois se configura como norma infralegal –, ela será “lei” no sentido amplo, que inquestionavelmente se revelou uma norma capaz de gerar direitos e obrigações, ou seja, fonte positiva do direito. No caso específico da SC nº 36, ela deverá respeitar os princípios da anterioridade e da anualidade. E, tendo sido publicada em 15/02/2023, ela respeitará a noventena em relação à apuração da CSLL, produzindo efeitos após 15 de maio de 2023; quanto à apuração do IRPJ, os efeitos se aplicarão apenas a partir do próximo ano.
Frise-se que ninguém está contra o STF, contra o COSIT, contra a RFB. O fato inquestionável é que, o segmento que se dedica à exploração econômica de “software de prateleira”, trabalha com margens muito baixas, tipicamente de mercadorias, sendo que a apuração de lucros pelo percentual de 8% estava bem dentro da realidade, enquanto que a aplicação do percentual de 32% inviabilizará a sobrevivência de um grande número de empresas do setor.
Tendo em vista os efeitos nefastos que essa alteração na aplicação da norma representa, e que a mudança atingirá de modo mais forte as pequenas e médias empresas, a ABES e entidades coirmãs no setor de TIC buscarão junto ao Executivo Federal, e por intermédio de sua atuação perante o legislativo, a implementação de medidas legais que possam amenizar os danos que as empresas suportarão. Nesse sentido, por exemplo, as entidades setoriais representativas do setor vão pleitear a equiparação das suas atividades aos serviços hospitalares, que continuam presumindo seus lucros pelo percentual de 8% sobre as receitas.
Manoel Antônio dos Santos é Diretor Jurídico da Associação Brasileira das Empresas de Software (ABES), e especialista em direito empresarial, com foco em tributos, contratos e tecnologia da informação.
Artigo publicado originamente no Portal ITForum em 09 de março de 2023.